Na minha visão do
inferno, estimados leitores, o calor é porto-alegrense, a comida é de bufê por
quilo, a música se alterna entre o sertanejo universitário, o axé e um mix dos
melhores momentos de Los Hermanos e Legião Urbana. A melhor parte é que as únicas
opções de conversa são o Silas Malafaia, a Benedita da Silva, o Magno Malta e
Anthony Garotinho.
Assim é o
inferno, lugar tão dantesco que o diabo mesmo se mandou, após uma candidatura
bem sucedida ao Senado pelo PR de qualquer estado. O inferno é o lugar para
onde os evangélicos acreditam que eu, você, o senhor aqui ao lado, todos vão,
se forem gays. Evangélicos sentem muito, muito medo dos gays.
Os nazistas
também sentiam muito medo dos judeus. Os turcos sentiam muito medo dos
armênios. Os brancos do sul dos Estados Unidos sentiam muito, muito medo dos
negros. Os hutu tinham muito medo dos tutsi. Os fundamentalistas islâmicos
morrem de medo das mulheres, dos adúlteros, ah, e dos gays. Os brancos têm
muito medo dos indígenas. Os destros sentem medo dos canhotos. Os japoneses já
tiveram medo dos coreanos e chineses, assim como os israelenses não atravessam
a rua se do outro lado vier um palestino, e, nesse caso, ao que parece, o medo
é recíproco.
Magno Malta, que
sim, é um senador da República, além dos bicos que faz de papagaio de pirata da
Dilma, tem medo de que o Brasil vire um império gay.
O inferno, caros
leitores, é o lugar criado especialmente para se armazenar os nossos medos,
todos eles. Os medrosos nada mais querem do que transformar a vida de todos em
um inferno. A tal de frente evangélica quer transformar a nossa vida em um
inferno, tudo graças ao medo.
Quem é mediado
pelo medo não é capaz de dar um passo em direção ao que não conheça. E quem é
ignorante, tem medo de tudo, exatamente por ser ignorante. Quem, além de
ignorante, recebe uma bíblia e todas as certezas do mundo, sente o seu medo se
transformar em ódio e intolerância. E é isso que vivemos, graças a esses
representantes do pior, instalados de maneira muito equivocada em um parlamento
democrático.
A democracia, ora
vejam, caros leitores, não é simplesmente o sistema que representa a maioria. A
democracia se define por ser o sistema que defende os interesses de todos. Ela
preserva, acima de tudo, os direitos das minorias. As maiorias não precisam
tanto assim de proteção, concordam?
O nosso sistema
democrático está sendo ameaçado por gente que não acredita em direitos dos
demais, porque, na sua ignorância total e totalitária, se acredita dona da
razão. Isso seria engraçado, se não fosse aqui e agora. Gente que vive na mais
completa ignorância se achando dona da razão, algo de que abdicaram em troca
das suas certezas. O que, mas o que mesmo, gente do calibre de um Garotinho, de
uma Benedita, de um Magno Malta, podem ter a acrescentar ao que quer que valha
a pena ver e ouvir?
Eles vêm nos
dizer que aqui, diferentemente do Irã, existem gays e eles são o mal. O que
você acha disso, nobre leitor? Você acha que o mal é culpa dos gays? Ou dos
judeus, dos palestinos, dos negros, dos indígenas, dos tutsis, das mulheres,
dos coreanos, dos chineses, dos canhotos, dos armênios ou dos Carneiro da
Cunha? O mal é frequentemente praticado por gente ruim. Olhe a foto de um Jean
Wyllys, e então olhe a foto de um Malafaia, de um Garotinho, de um Magno Malta
ou de um Wellington Jr. Quem lhe parece mais capaz de fazer maldades com a mais
total tranquilidade?
A nossa
Constituição é o nosso maior e melhor documento anti-inferno. Ela diz que somos
todos iguais perante o estado e a lei. Olhem bem: todos. Até mesmo o Malta e
Garotinho, até mesmo esses seres desdotados da mínima capacidade de leitura do
que não for uma velha e inútil bíblia, se estamos em uma república laica.
Todos, todos iguais.
Eu não acho que
os Malafaia, Garotinho, Malta ou Benedita sejam iguais a mim, porque eu
acredito na igualdade e eles não. Eu acredito na bondade e eles não. Tanto eles
não acreditam na bondade, que não aceitam a lei que torna a homofobia um crime.
Se eles não querem a lei, é porque querem manter o direito de praticar a odiosa
homofobia, como fazem nas suas seitas. Querem o direito equivalente ao direito
de praticar o racismo, a discriminação e o sexismo, que não existe.
Eles querem,
basicamente, que o nosso mundo se transforme num inferno sobre a Terra.
Normalmente, eu não acredito no inferno. Olhar para eles me faz acreditar, se
não na sua existência, então na sua possibilidade. Eu não quero que essa
possibilidade seja vencedora. Existe muita beleza em toda parte, nesse mundo de
tantas partes. Se eles não vêem, nós vemos. E, quem vê, ora vejam, vence.
Marcelo Carneiro da Cunha
Escritor e jornalista.
Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim
e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos
"Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record.
Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em
junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de
seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe",
publicados pela editora Projeto.
Fonte: Terra Magazine