O outro lado da celebridade
Autor(es): Paulo Totti | De Brasília
Valor Econômico – 22/07/2011
À mesa com o valor – Deputado Jean Wyllys: EX-BBB, primeiro
gay ativista da Câmara, diz porque sua luta é também em favor dos
negros e outras minorias. “Venho da extrema pobreza”.
Talvez o deputado Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA) não saiba.
E também o ex-senador (PT-SP) e hoje ministro de Ciência e Tecnologia,
Aloizio Mercadante. Mas ambos foram responsáveis por Jean Wyllys de
Matos Santos ingressar na política partidária, eleger-se deputado pelo
Rio de Janeiro e constituir-se no primeiro gay ativista do Congresso
Nacional.Nas últimas eleições municipais, ACM Neto o convidou para ser
candidato a vereador em Salvador. “O Neto é muito simpático, um
“gentleman”. Mas eu não estava mais em Salvador. E não tinha, nem
tenho, qualquer identificação com o DEM. Então agradeci.” Semanas
depois, Jean Wyllys estava em Brasília para participar de uma audiência
pública no Senado sobre Estado laico e, numa conversa de corredor,
Mercadante perguntou por que não se filiava a um partido. “”Olha, estou
contente com minha atuação como cidadão”, respondi. E ele: “Filiar-se a
um partido é importante, o partido é que leva à institucionalização das
nossas ideias”. Voltei para o Rio com isso na cabeça. Achei que o
universo estava me dando um aviso.”
No Rio, Jean Wyllys surpreendeu Mercadante e ACM: procurou o Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL) e assinou ficha. “Poderia ter sido o PT,
que nos grotões do Brasil é o que está mais ligado aos movimentos
sociais. E votei em Lula desde 1994. Mas o PT no Rio sofreu uma
desfiguração. Por isso, comparando a prática e os programas, me
identifiquei mais com o PSOL.” Ainda não pensava em ser candidato até
que Heloisa Helena fez o convite para concorrer a deputado federal. Os
argumentos da ex-senadora (PSOL- AL) e hoje vereadora em Maceió foram
quase os mesmos de Mercadante: “Pessoas bacanas não podem se apartar da
política”. Mas Jean Wyllys diz que é “pisciano” e se inspira em Caetano
Veloso: “Não me amarra dinheiro não, mas os mistérios”. E
misteriosamente se negou a usar na campanha o único fato que o tornaria
lembrado por todo o Estado do Rio de Janeiro: O número 5005 do PSOL era
do vencedor do “Big Brother Brasil” de 2005, com mais de 50 milhões de
acessos a seu favor na noite da decisão final.
No horário da campanha pela TV, os candidatos do PSOL a deputado
federal tinham direito a um total de 24,35 segundos às terças-feiras,
quintas e sábados. Sem aproveitar o recall do sucesso no “BBB” e sem
tempo para dizer abertamente o que pensava e representava, Jean Wyllys
conseguiu 13.018 votos, e foi eleito na sobra dos 240.724 que Chico
Alencar amealhou para a legenda. “Só apareci duas vezes no horário
eleitoral. Cinco segundos. Isso mesmo: 1, 2, 3, 4, 5… e acabou, corta!
E não tive uma só inserção nos intervalos comerciais, que é quando o
pessoal não desliga a televisão. Minha campanha foi invisível. Só
depois de eleito se soube que eu era candidato.”
Da campanha, o deputado guarda o button de fitinhas com as cores do
arco-íris que ostenta no plenário da Câmara e chegou com ele na lapela
direita do paletó (na lapela esquerda, o escudo de parlamentar) ao
restaurante Oca da Tribo, escolhido por ele para este “À Mesa com o
Valor”. Jean Wyllys veste-se como seus pares, terno escuro completo,
camisa branca, gravata clara. Não há trejeitos, olhares de viés ou voz
de falsete. E os expedientes da Câmara que carrega são sustentados no
braço esquerdo estendido verticalmente e não protegidos contra o peito
com recato. Enfim, se fosse pouco mais magro e mais alto, poderia ser
confundido, por exemplo, com o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ).
O restaurante, em endereço que só os moradores de Brasília localizam
– SCES, Conjunto 57, lote 54 – é uma grande choupana de madeira coberta
de palha, cujo interior o proprietário, um angolano, decorou com peças
do artesanato afro e de índios do Xingu. Estilo “rústico-chique”, como
registrou um admirador na internet. A comida é mais ou menos orgânica
com concessões ao bom paladar: bufê de preço fixo com 12 tipos de
saladas, moqueca de banana-da-terra, cuscuz marroquino, biju de
mandioca ralada com coco, paella de abobrinha, couve e cenoura, e,
pedido extra, delicadas porções de carne bovina, de búfalo, javali e
avestruz. A vegetariana Michelle Obama, primeira-dama dos Estados
Unidos, almoçou ali, segundo registro de foto à vista dos clientes.
O deputado chega com fome e não faz cerimônia. “Um filezinho cortado no prato, para começar a conversa. E Coca-Cola zero.”
- O senhor…
- Me chame de você.
-… Você é titular na Comissão de Finanças e Tributação e
suplente na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Não há uma inversão
aí?
- Não, não há contradição nem inversão. Chico Alencar é o líder da
nossa bancada federal de três deputados [o terceiro é Ivan Valente, de
São Paulo]. Ele quis a Comissão de Direitos Humanos e tem a primazia,
até por seu tempo de Casa. E estou satisfeito na de Finanças e
Tributação. Lá é que se discute o orçamento, o dinheiro para políticas
públicas. Estou lá para lutar por distribuição de renda, justiça
fiscal, tributação que não seja tão regressiva, direitos sociais. Isso
é entrar na batalha por direitos humanos de maneira efetiva e não
romântica numa comissão majoritariamente patrimonialista, machista.
Aquele espaço não pode ser monopólio do macho adulto, branco, católico
ou pentecostal, tem de ser espaço para todos, da mulher, do negro, dos
homossexuais. Minha presença lá é mesmo para subverter. E é uma
provocação, tem essa simbologia também. Nada de chancelar a visão muito
em voga nas elites: “Dê uma bola ou um berimbau ao negro e ele deixa de
nos assaltar” ou “ao homossexual arranje um emprego de cabeleireiro
porque como auxiliar da beleza feminina ele não nos escandaliza”. Não.
Digo lá que queremos políticas públicas que garantam direitos iguais,
acesso a todo o mercado de trabalho e sentar-nos à mesa para discutir
os grandes temas. A destinação dos impostos, inclusive.
- Você está preparado para a defesa dessas teses na Comissão?
- Lá há gente que se acha dono da matéria, proprietário da comissão.
Mas sou professor universitário com uma formação sólida, talvez mais
sólida do que muitos deles, e posso tratar, sim, das questões de
economia. E sempre com um viés social.
Quando apareceu no “BBB”, Jean Wyllys tinha 31 anos e títulos
vários: graduação em comunicação social, iniciação científica, mestrado
em letras e linguística, publicara o livro “Aflitos, Salvador” (“Ainda
Lembro” e “Tudo ao Mesmo Tempo Agora” são posteriores a 2005) e era
professor da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Jorge
Amado, coordenando cursos de pós-graduação. No Rio, para onde se
transferiu após o “BBB”, deu aulas na Escola Superior de Publicidade e
Marketing (ESPM) e na Universidade Veiga de Almeida (UVA). Em suas
pesquisas, aprofundou-se no estudo da “literatura de preso”, que se
difundiu pelo país após o sucesso de “Estação Carandiru”, de Dráuzio
Varella, com o que conquistou prestigio além do universo acadêmico
baiano.
Para cursar jornalismo foi aprovado na primeira tentativa em três
vestibulares: Universidade Federal, Universidade Católica e
Universidade do Estado da Bahia. E em breve se tornaria um jornalista
conhecido no Estado. Trabalhou, ainda como estudante, um ano na
“Tribuna da Bahia” e mais oito, como repórter, editor e colunista, no
“Correio da Bahia”, o jornal da família de Antônio Carlos Magalhães.
- Como repórter, o que fazia?
- Fazia de tudo, problemas da cidade, saúde, transporte, política.
Gostava do jornalismo investigativo, de denúncia. Mas não gostava de
fazer futebol. Não torço por nenhum time lá, apesar de simpatizar com o
Bahia – é mais povão que o Vitória, e eu sou povão. Só fiz uma
reportagem para o caderno de esportes, sobre o comportamento da torcida
na Fonte Nova… [Ri] Acho que foi por isso que o estádio desabou.
O aperitivo de filé acabou e Jean Wyllys vai ao bufê. Saladas e
pratos quentes variados, mas em porções mínimas. Parece não dar atenção
à comida, prefere conversar.
Ele se diz povão e sua história não o torna exatamente um exemplar da
elite branca e bem comportada. Nasceu em Alagoinhas, 100 quilômetros ao
norte de Salvador. O lugar foi refúgio de negros durante a escravidão e
hoje um dos irmãos de Jean alfabetiza adultos no Quilombo do Cangula.
“Venho da extrema pobreza”, diz Jean. Na casa de taipa sem banheiro
e sem água encanada ou poço, a família de seis filhos passou
literalmente fome. O pai era pintor de automóveis – gostava tanto do
jeep Willys que deu seu nome ao filho, com exagero de ipsilones. Negro,
extrovertido, adepto do candomblé, o pai de Jean gostava de música,
cantava em serestas. Mas era alcoólatra. “Desde que me entendo por
gente ele já estava desempregado, vivia de bicos. Esperávamos que
voltasse da rua trazendo algo para comer. Chegava bêbado e sem nada.
Então, dormíamos com fome.”
A mãe, branca, muito tímida e muito católica, “lavava de ganho”,
para fora, às margens do rio. Água para beber, tinham que buscar no
chafariz público. Uma das duas irmãs mais velhas foi entregue a uma tia
para criar. A outra, já mocinha, empregou-se num armarinho e, aos dez
anos, Jean foi vender algodão-doce na rua, na companhia do irmão
George, um ano mais novo. “Estudávamos de manhã e vendíamos algodão à
tarde. Nas férias, trabalhávamos em dois turnos.” (Hoje, George está em
Salvador e é capitão da Polícia Militar). Nessa época, Jean teve o
primeiro contato com a política. Participava de atividades das
comunidades eclesiais de base na periferia; foi até coroinha. Os padres
em sua região eram ligados à Teoria da Libertação. A campanha da
Fraternidade de 1988 tinha por mote “Ouvir o clamor desse povo!”
Jean estudava em escola pública e aos 13 anos foi menor-aprendiz da
Caixa Econômica Federal. Suas notas eram sempre superiores a 8 e, por
isso, na oitava série e aos 14 anos, aceitaram-no como candidato à
Fundação José Carvalho, ligada à Companhia Ferro Ligas da Bahia
(Ferbasa). Havia uma pré-seleção de 80 alunos e, depois de um mês de
observação, já na escola da Fundação em Pojuca, a 80 quilômetros de
Salvador, 25 eram escolhidos para os cursos de informática, de técnico
em mineração e de tradutor e intérprete. Jean foi um deles e optou por
informática.
A Fundação era um internato e seu sistema de ensino se inspirava em
modelos suíços. Não havia professor na sala de aula, o próprio aluno
gerenciava seu aprendizado. Só se recorria ao professor em caso de
dúvida, depois de consultar o material didático fornecido, a biblioteca
e a videoteca. Geografia, história, sociologia, psicologia, estavam
reunidas numa disciplina única, “conhecimentos gerais”. Além de línguas
e ciências naturais, havia formação em música, cinema e até oratória.
Promoviam um júri simulado, por exemplo, para debater “Crime e
Castigo”, de Dostoiévski. “Se você tinha simpatia por um personagem,
colocavam você para acusá-lo, e vice-versa, para você treinar a
capacidade de argumentação.” Hoje, a escola adota o currículo normal do
ensino médio e funciona só para filhos de funcionários da Ferbasa. “Da
Fundação fui para Salvador, já com emprego certo no Centro de
Processamento de Dados do Hospital Português. E totalmente preparado
para passar no vestibular antes de fazer 18 anos.”
Em todo o curso de jornalismo da UFBA, Jean Wyllys era o único aluno
que trabalhava e que não tinha carro. “Os negros, deixe-me ver, acho
que eram cinco. Na Bahia, veja só!” E o jovem já tinha se assumido como
negro, e se aproximado das religiões de matriz africana. “Em
Alagoinhas, minha mãe proibia de ir a terreiros, mas eu ia escondido, o
candomblé já me fascinava. Depois, na luta pelos direitos humanos,
pelas minorias, me aproximei dessa religiosidade inclusiva. Não sou
devoto, nunca fui feito no santo, mas passei como professor a estudar
essas religiões.”
- E como você entrou no “Big Brother”?
- O “BBB” era um sucesso no Brasil inteiro, e decidi estudar aquele
gênero de entretenimento. A Maria Immacolata [Vassallo de Lopes],
professora da USP, tinha publicado o livro “Convivendo com a
Telenovela”, que estuda a comunicação do ponto de vista do receptor, do
público. Ela fez a pequisa a partir da novela de Aguinaldo Silva,
“Pedra sobre Pedra”. Eu queria aplicar essa metodologia a partir do
“reality show”, mas do ponto de vista do emissor, da origem da
mensagem. Queria conhecer de dentro essa estrutura, passar por essa
experiência. Usá-la para o doutorado. Mandei a fita para inscrição,
disse que era gay, e só omiti que minha preocupação era acadêmica.
Corri o risco de abalar a imagem de professor universitário num
programa de massa, demonizado e mal visto pela intelligentsia
brasileira. Mas tinha consciência de onde estava e da responsabilidade
de estar ali. Então, foi uma coisa quase gramsciana, de ocupar espaços
de poder para construir novas mentalidades, fazer daquilo um momento de
representação positiva da homossexualidade. Me aceitaram. E ganhei,
apesar de não esperar ficar por lá mais de três ou quatro programas.
- E daí virou celebridade.
- Daí deixo de ser um professor atuante no meio acadêmico da Bahia e
passo a ser o cara do “Big Brother”. Caio de cabeça nesse circo, que
destrói. A indústria cultural funciona sob o princípio da aceleração e
da renovação permanentes, então o rosto do momento é sempre um novo
rosto. Já sabia que seria assim e resolvi resistir à destruição, unir
essa experiência, que não deixou de ser bacana, a toda a história da
minha vida.
Jean Wyllys conseguiu que o contrato de trabalho que a TV Globo
ofereceu fosse o de jornalista. O programa de Ana Maria Braga, “Mais
Você”, era na época gerado em São Paulo, e o campeão do “BBB-2005″
passou a ser repórter especial no núcleo do Rio. O contrato era de
quatro anos, mas Jean pediu para sair aos 24 meses. “Começou a me dar
infelicidade. A Globo exige isenção de seus jornalistas e não consigo
ser isento. Sou homem de tomar partido. A Globo entendeu. Não precisei
pagar multa, fiz acordo, fui dar aulas de tempo integral na ESPM e na
UVA e mergulhei na militância LGBT (acrônimo de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, Transgêneros), associada à defesa de negros,
mulheres, crenças afros, as minorias. Virei colunista do “G Magazine”,
e do “Correio da Bahia”.
O prêmio de R$ 1 milhão pela vitória no “BBB” foi usado, segundo
Jean Wyllys, na compra de um apartamento de três quartos em Salvador,
onde mora uma de suas irmãs, e de uma casa, “confortável, bacana,
quatro quartos”, para sua mãe, que, aos 63 anos, continua vivendo em
Alagoinhas, na companhia de três dos filhos. Ajudou alguns outros
parentes e amigos e investiu o que sobrou na poupança. Mas teve que
usar parte dessa sobra na campanha para deputado. “Gastei na eleição R$
25 mil, incluindo viagens pelo interior do Estado do Rio.”
No Congresso, Jean diz que sua luta é a de levar adiante a pauta
introduzida pela hoje senadora Marta Suplicy (PT-SP) -”Ela é a
pioneira” – de direitos dos homossexuais, “articulada com a questão
maior do combate à discriminação das populações vulneráveis”. O
deputado diz que houve uma vitória da causa LGBT no Supremo Tribunal
Federal (STF), ao reconhecer as relações homoafetivas. No Congresso,
porém, é que o obscurantismo persiste, com ameaças até de retrocesso.
“Há um recrudecimento da direita conservadora e religiosa, nos moldes
do Tea Party, a direita do Partido Republicano dos Estados Unidos, e
explicitada claramente na nossa última campanha presidencial.” O PSOL
perdeu por 10 a 7 na Comissão de Ética da Câmara uma representação
contra o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) por apologia à discriminação.
Tramitam na Câmara projetos que tiram direitos dos homossexuais. E o
deputado João Campos (PSDB-GO) “chegou ao delírio” de propor sustar,
por decreto legislativo, a decisão do STF.
- Sua opção pela homossexualidade foi aos 16 anos. Como sua família reagiu?
- Minha opção foi aos 16 anos sem ter tido nenhuma efetiva
experiência homossexual. Percebia que as meninas não me interessavam,
os garotos é que me atraiam. E eu não queria arranjar namorada para
fingir. Falei para minha mãe, e ela, de início, reagiu mal. Para ela,
gay era um marginal. Depois foi aceitando, hoje a relação familiar não
tem problemas e um dos meus irmãos que mora em Alagoinhas também é gay.
No momento, Jean Wyllys não tem companheiro. Antes de morar no Rio
teve uma relação de um ano e seis meses na Bahia. E, no Rio, os namoros
foram rápidos, de seis, sete meses. Em Brasília, o relacionamento fica
mais difícil. Ponte aérea Rio-Brasília; trabalho em Brasília de terça a
sexta; no fim de semana, atividades políticas. “As pessoas cobram, né?”
- E o que aconteceu com seu pai?
- Não consegui ter uma relação positiva com ele, porque rolava esse
comportamento dele, o alcoolismo. E o olhar que eu tinha sobre meu pai
era o olhar de minha mãe. Via o sofrimento dela e tomava as dores dela.
Só comecei a compreendê-lo quando adulto e distante dele. E fui me
reconhecendo assombrosamente parecido com ele. Foi muito doloroso
identificar que as melhores coisas que eu tinha, que as pessoas mais
admiravam em mim, não vinham de minha mãe, vinham dele. Minha mãe é
calada, pé no chão. Ele tinha um certo carisma, buscava a popularidade,
tinha sua poesia. O fato de ser alcoólatra nos afastou.
- Você está assistindo à novela das nove, “Insensato Coração”?
- Eu me vi muito na relação do André [Lázaro Ramos] com o pai dele
[Milton Gonçalves]. Na cena da morte chorei muito porque recuperou os
últimos meses da relação com meu pai. Estivemos muito tempo afastados.
Um belo dia, fui de Salvador visitar minha mãe em Alagoinhas e ele
estava doente. Só parava de beber quando estava doente, de cama.
Perguntei se tinha ido ao médico. “Fui”, me disse. “Ele me passou um
antibiótico. É garganta.” Olhei seu pescoço e tinha um caroço.
Imediatamente pressenti o pior. O salário no jornal só me permitia
pagar um plano de saúde, e eu pagava para minha mãe. Tive então que
recorrer, pela primeira e única vez na vida, à minha posição de
jornalista. Consegui furar a fila no Aristides Maltez, em Salvador,
hospital público de referência. No dia de pegar o resultado da biópsia,
a gente foi de ônibus, ele do meu lado. Era tão louco aquilo!… Havia um
abismo entre mim e ele. E ele era o meu pai. O diagnóstico foi
positivo, o câncer era na base da língua. Do diagnóstico até a morte,
foram nove meses. Um parto ao contrário. Nove meses de redescoberta da
gente. E de perdão, sabe? Quando morreu, senti falta de tudo que ele
não foi e de um pai que não tive. A vida distribui mal as suas cartas e
ele recebeu um péssimo jogo… Acho que ele gostaria de me ver agora…
As lágrimas brotam dos olhos de Jean Wyllys e escorrem para o bigode e o cavanhaque. “Desculpe”, diz.
Único gay assumido no Congresso Nacional, Jean Wyllys não prejulga
os que se negam a assumir. Para ele, cada um tem seu tempo. E cita
Caetano mais uma vez: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
- O que eu combato são os hipócritas, os enrustidos que fazem um discurso de desrespeito e incitação à violência contra gays.
- Isso existe?
- Muito.
- No Congresso, quero dizer.
- No Congresso, inclusive. Dá vontade de arrombar a porta do armário
e puxá-los para fora. Nos Estados Unidos, os gays fizeram isso: “Out!”
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