quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Jean Wyllys - o outro lado da celebridade (Entrevista ao jornal Valor Econômico – 22-07-2011)

O outro lado da celebridade
Autor(es): Paulo Totti | De Brasília
Valor Econômico – 22/07/2011
À mesa com o valor – Deputado Jean Wyllys: EX-BBB, primeiro gay ativista da Câmara, diz porque sua luta é também em favor dos negros e outras minorias. “Venho da extrema pobreza”.
Talvez o deputado Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA) não saiba. E também o ex-senador (PT-SP) e hoje ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante. Mas ambos foram responsáveis por Jean Wyllys de Matos Santos ingressar na política partidária, eleger-se deputado pelo Rio de Janeiro e constituir-se no primeiro gay ativista do Congresso Nacional.Nas últimas eleições municipais, ACM Neto o convidou para ser candidato a vereador em Salvador. “O Neto é muito simpático, um “gentleman”. Mas eu não estava mais em Salvador. E não tinha, nem tenho, qualquer identificação com o DEM. Então agradeci.” Semanas depois, Jean Wyllys estava em Brasília para participar de uma audiência pública no Senado sobre Estado laico e, numa conversa de corredor, Mercadante perguntou por que não se filiava a um partido. “”Olha, estou contente com minha atuação como cidadão”, respondi. E ele: “Filiar-se a um partido é importante, o partido é que leva à institucionalização das nossas ideias”. Voltei para o Rio com isso na cabeça. Achei que o universo estava me dando um aviso.”
No Rio, Jean Wyllys surpreendeu Mercadante e ACM: procurou o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e assinou ficha. “Poderia ter sido o PT, que nos grotões do Brasil é o que está mais ligado aos movimentos sociais. E votei em Lula desde 1994. Mas o PT no Rio sofreu uma desfiguração. Por isso, comparando a prática e os programas, me identifiquei mais com o PSOL.” Ainda não pensava em ser candidato até que Heloisa Helena fez o convite para concorrer a deputado federal. Os argumentos da ex-senadora (PSOL- AL) e hoje vereadora em Maceió foram quase os mesmos de Mercadante: “Pessoas bacanas não podem se apartar da política”. Mas Jean Wyllys diz que é “pisciano” e se inspira em Caetano Veloso: “Não me amarra dinheiro não, mas os mistérios”. E misteriosamente se negou a usar na campanha o único fato que o tornaria lembrado por todo o Estado do Rio de Janeiro: O número 5005 do PSOL era do vencedor do “Big Brother Brasil” de 2005, com mais de 50 milhões de acessos a seu favor na noite da decisão final.
No horário da campanha pela TV, os candidatos do PSOL a deputado federal tinham direito a um total de 24,35 segundos às terças-feiras, quintas e sábados. Sem aproveitar o recall do sucesso no “BBB” e sem tempo para dizer abertamente o que pensava e representava, Jean Wyllys conseguiu 13.018 votos, e foi eleito na sobra dos 240.724 que Chico Alencar amealhou para a legenda. “Só apareci duas vezes no horário eleitoral. Cinco segundos. Isso mesmo: 1, 2, 3, 4, 5… e acabou, corta! E não tive uma só inserção nos intervalos comerciais, que é quando o pessoal não desliga a televisão. Minha campanha foi invisível. Só depois de eleito se soube que eu era candidato.”
Da campanha, o deputado guarda o button de fitinhas com as cores do arco-íris que ostenta no plenário da Câmara e chegou com ele na lapela direita do paletó (na lapela esquerda, o escudo de parlamentar) ao restaurante Oca da Tribo, escolhido por ele para este “À Mesa com o Valor”. Jean Wyllys veste-se como seus pares, terno escuro completo, camisa branca, gravata clara. Não há trejeitos, olhares de viés ou voz de falsete. E os expedientes da Câmara que carrega são sustentados no braço esquerdo estendido verticalmente e não protegidos contra o peito com recato. Enfim, se fosse pouco mais magro e mais alto, poderia ser confundido, por exemplo, com o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ).
O restaurante, em endereço que só os moradores de Brasília localizam – SCES, Conjunto 57, lote 54 – é uma grande choupana de madeira coberta de palha, cujo interior o proprietário, um angolano, decorou com peças do artesanato afro e de índios do Xingu. Estilo “rústico-chique”, como registrou um admirador na internet. A comida é mais ou menos orgânica com concessões ao bom paladar: bufê de preço fixo com 12 tipos de saladas, moqueca de banana-da-terra, cuscuz marroquino, biju de mandioca ralada com coco, paella de abobrinha, couve e cenoura, e, pedido extra, delicadas porções de carne bovina, de búfalo, javali e avestruz. A vegetariana Michelle Obama, primeira-dama dos Estados Unidos, almoçou ali, segundo registro de foto à vista dos clientes.
O deputado chega com fome e não faz cerimônia. “Um filezinho cortado no prato, para começar a conversa. E Coca-Cola zero.”
- O senhor…
- Me chame de você.
-… Você é titular na Comissão de Finanças e Tributação e suplente na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Não há uma inversão aí?
- Não, não há contradição nem inversão. Chico Alencar é o líder da nossa bancada federal de três deputados [o terceiro é Ivan Valente, de São Paulo]. Ele quis a Comissão de Direitos Humanos e tem a primazia, até por seu tempo de Casa. E estou satisfeito na de Finanças e Tributação. Lá é que se discute o orçamento, o dinheiro para políticas públicas. Estou lá para lutar por distribuição de renda, justiça fiscal, tributação que não seja tão regressiva, direitos sociais. Isso é entrar na batalha por direitos humanos de maneira efetiva e não romântica numa comissão majoritariamente patrimonialista, machista. Aquele espaço não pode ser monopólio do macho adulto, branco, católico ou pentecostal, tem de ser espaço para todos, da mulher, do negro, dos homossexuais. Minha presença lá é mesmo para subverter. E é uma provocação, tem essa simbologia também. Nada de chancelar a visão muito em voga nas elites: “Dê uma bola ou um berimbau ao negro e ele deixa de nos assaltar” ou “ao homossexual arranje um emprego de cabeleireiro porque como auxiliar da beleza feminina ele não nos escandaliza”. Não. Digo lá que queremos políticas públicas que garantam direitos iguais, acesso a todo o mercado de trabalho e sentar-nos à mesa para discutir os grandes temas. A destinação dos impostos, inclusive.
- Você está preparado para a defesa dessas teses na Comissão?
- Lá há gente que se acha dono da matéria, proprietário da comissão. Mas sou professor universitário com uma formação sólida, talvez mais sólida do que muitos deles, e posso tratar, sim, das questões de economia. E sempre com um viés social.
Quando apareceu no “BBB”, Jean Wyllys tinha 31 anos e títulos vários: graduação em comunicação social, iniciação científica, mestrado em letras e linguística, publicara o livro “Aflitos, Salvador” (“Ainda Lembro” e “Tudo ao Mesmo Tempo Agora” são posteriores a 2005) e era professor da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Jorge Amado, coordenando cursos de pós-graduação. No Rio, para onde se transferiu após o “BBB”, deu aulas na Escola Superior de Publicidade e Marketing (ESPM) e na Universidade Veiga de Almeida (UVA). Em suas pesquisas, aprofundou-se no estudo da “literatura de preso”, que se difundiu pelo país após o sucesso de “Estação Carandiru”, de Dráuzio Varella, com o que conquistou prestigio além do universo acadêmico baiano.
Para cursar jornalismo foi aprovado na primeira tentativa em três vestibulares: Universidade Federal, Universidade Católica e Universidade do Estado da Bahia. E em breve se tornaria um jornalista conhecido no Estado. Trabalhou, ainda como estudante, um ano na “Tribuna da Bahia” e mais oito, como repórter, editor e colunista, no “Correio da Bahia”, o jornal da família de Antônio Carlos Magalhães.
- Como repórter, o que fazia?
- Fazia de tudo, problemas da cidade, saúde, transporte, política. Gostava do jornalismo investigativo, de denúncia. Mas não gostava de fazer futebol. Não torço por nenhum time lá, apesar de simpatizar com o Bahia – é mais povão que o Vitória, e eu sou povão. Só fiz uma reportagem para o caderno de esportes, sobre o comportamento da torcida na Fonte Nova… [Ri] Acho que foi por isso que o estádio desabou.
O aperitivo de filé acabou e Jean Wyllys vai ao bufê. Saladas e pratos quentes variados, mas em porções mínimas. Parece não dar atenção à comida, prefere conversar.
Ele se diz povão e sua história não o torna exatamente um exemplar da elite branca e bem comportada. Nasceu em Alagoinhas, 100 quilômetros ao norte de Salvador. O lugar foi refúgio de negros durante a escravidão e hoje um dos irmãos de Jean alfabetiza adultos no Quilombo do Cangula.
“Venho da extrema pobreza”, diz Jean. Na casa de taipa sem banheiro e sem água encanada ou poço, a família de seis filhos passou literalmente fome. O pai era pintor de automóveis – gostava tanto do jeep Willys que deu seu nome ao filho, com exagero de ipsilones. Negro, extrovertido, adepto do candomblé, o pai de Jean gostava de música, cantava em serestas. Mas era alcoólatra. “Desde que me entendo por gente ele já estava desempregado, vivia de bicos. Esperávamos que voltasse da rua trazendo algo para comer. Chegava bêbado e sem nada. Então, dormíamos com fome.”
A mãe, branca, muito tímida e muito católica, “lavava de ganho”, para fora, às margens do rio. Água para beber, tinham que buscar no chafariz público. Uma das duas irmãs mais velhas foi entregue a uma tia para criar. A outra, já mocinha, empregou-se num armarinho e, aos dez anos, Jean foi vender algodão-doce na rua, na companhia do irmão George, um ano mais novo. “Estudávamos de manhã e vendíamos algodão à tarde. Nas férias, trabalhávamos em dois turnos.” (Hoje, George está em Salvador e é capitão da Polícia Militar). Nessa época, Jean teve o primeiro contato com a política. Participava de atividades das comunidades eclesiais de base na periferia; foi até coroinha. Os padres em sua região eram ligados à Teoria da Libertação. A campanha da Fraternidade de 1988 tinha por mote “Ouvir o clamor desse povo!”
Jean estudava em escola pública e aos 13 anos foi menor-aprendiz da Caixa Econômica Federal. Suas notas eram sempre superiores a 8 e, por isso, na oitava série e aos 14 anos, aceitaram-no como candidato à Fundação José Carvalho, ligada à Companhia Ferro Ligas da Bahia (Ferbasa). Havia uma pré-seleção de 80 alunos e, depois de um mês de observação, já na escola da Fundação em Pojuca, a 80 quilômetros de Salvador, 25 eram escolhidos para os cursos de informática, de técnico em mineração e de tradutor e intérprete. Jean foi um deles e optou por informática.
A Fundação era um internato e seu sistema de ensino se inspirava em modelos suíços. Não havia professor na sala de aula, o próprio aluno gerenciava seu aprendizado. Só se recorria ao professor em caso de dúvida, depois de consultar o material didático fornecido, a biblioteca e a videoteca. Geografia, história, sociologia, psicologia, estavam reunidas numa disciplina única, “conhecimentos gerais”. Além de línguas e ciências naturais, havia formação em música, cinema e até oratória. Promoviam um júri simulado, por exemplo, para debater “Crime e Castigo”, de Dostoiévski. “Se você tinha simpatia por um personagem, colocavam você para acusá-lo, e vice-versa, para você treinar a capacidade de argumentação.” Hoje, a escola adota o currículo normal do ensino médio e funciona só para filhos de funcionários da Ferbasa. “Da Fundação fui para Salvador, já com emprego certo no Centro de Processamento de Dados do Hospital Português. E totalmente preparado para passar no vestibular antes de fazer 18 anos.”
Em todo o curso de jornalismo da UFBA, Jean Wyllys era o único aluno que trabalhava e que não tinha carro. “Os negros, deixe-me ver, acho que eram cinco. Na Bahia, veja só!” E o jovem já tinha se assumido como negro, e se aproximado das religiões de matriz africana. “Em Alagoinhas, minha mãe proibia de ir a terreiros, mas eu ia escondido, o candomblé já me fascinava. Depois, na luta pelos direitos humanos, pelas minorias, me aproximei dessa religiosidade inclusiva. Não sou devoto, nunca fui feito no santo, mas passei como professor a estudar essas religiões.”
- E como você entrou no “Big Brother”?
- O “BBB” era um sucesso no Brasil inteiro, e decidi estudar aquele gênero de entretenimento. A Maria Immacolata [Vassallo de Lopes], professora da USP, tinha publicado o livro “Convivendo com a Telenovela”, que estuda a comunicação do ponto de vista do receptor, do público. Ela fez a pequisa a partir da novela de Aguinaldo Silva, “Pedra sobre Pedra”. Eu queria aplicar essa metodologia a partir do “reality show”, mas do ponto de vista do emissor, da origem da mensagem. Queria conhecer de dentro essa estrutura, passar por essa experiência. Usá-la para o doutorado. Mandei a fita para inscrição, disse que era gay, e só omiti que minha preocupação era acadêmica. Corri o risco de abalar a imagem de professor universitário num programa de massa, demonizado e mal visto pela intelligentsia brasileira. Mas tinha consciência de onde estava e da responsabilidade de estar ali. Então, foi uma coisa quase gramsciana, de ocupar espaços de poder para construir novas mentalidades, fazer daquilo um momento de representação positiva da homossexualidade. Me aceitaram. E ganhei, apesar de não esperar ficar por lá mais de três ou quatro programas.
- E daí virou celebridade.
- Daí deixo de ser um professor atuante no meio acadêmico da Bahia e passo a ser o cara do “Big Brother”. Caio de cabeça nesse circo, que destrói. A indústria cultural funciona sob o princípio da aceleração e da renovação permanentes, então o rosto do momento é sempre um novo rosto. Já sabia que seria assim e resolvi resistir à destruição, unir essa experiência, que não deixou de ser bacana, a toda a história da minha vida.
Jean Wyllys conseguiu que o contrato de trabalho que a TV Globo ofereceu fosse o de jornalista. O programa de Ana Maria Braga, “Mais Você”, era na época gerado em São Paulo, e o campeão do “BBB-2005″ passou a ser repórter especial no núcleo do Rio. O contrato era de quatro anos, mas Jean pediu para sair aos 24 meses. “Começou a me dar infelicidade. A Globo exige isenção de seus jornalistas e não consigo ser isento. Sou homem de tomar partido. A Globo entendeu. Não precisei pagar multa, fiz acordo, fui dar aulas de tempo integral na ESPM e na UVA e mergulhei na militância LGBT (acrônimo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros), associada à defesa de negros, mulheres, crenças afros, as minorias. Virei colunista do “G Magazine”, e do “Correio da Bahia”.
O prêmio de R$ 1 milhão pela vitória no “BBB” foi usado, segundo Jean Wyllys, na compra de um apartamento de três quartos em Salvador, onde mora uma de suas irmãs, e de uma casa, “confortável, bacana, quatro quartos”, para sua mãe, que, aos 63 anos, continua vivendo em Alagoinhas, na companhia de três dos filhos. Ajudou alguns outros parentes e amigos e investiu o que sobrou na poupança. Mas teve que usar parte dessa sobra na campanha para deputado. “Gastei na eleição R$ 25 mil, incluindo viagens pelo interior do Estado do Rio.”
No Congresso, Jean diz que sua luta é a de levar adiante a pauta introduzida pela hoje senadora Marta Suplicy (PT-SP) -”Ela é a pioneira” – de direitos dos homossexuais, “articulada com a questão maior do combate à discriminação das populações vulneráveis”. O deputado diz que houve uma vitória da causa LGBT no Supremo Tribunal Federal (STF), ao reconhecer as relações homoafetivas. No Congresso, porém, é que o obscurantismo persiste, com ameaças até de retrocesso. “Há um recrudecimento da direita conservadora e religiosa, nos moldes do Tea Party, a direita do Partido Republicano dos Estados Unidos, e explicitada claramente na nossa última campanha presidencial.” O PSOL perdeu por 10 a 7 na Comissão de Ética da Câmara uma representação contra o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) por apologia à discriminação. Tramitam na Câmara projetos que tiram direitos dos homossexuais. E o deputado João Campos (PSDB-GO) “chegou ao delírio” de propor sustar, por decreto legislativo, a decisão do STF.
- Sua opção pela homossexualidade foi aos 16 anos. Como sua família reagiu?
- Minha opção foi aos 16 anos sem ter tido nenhuma efetiva experiência homossexual. Percebia que as meninas não me interessavam, os garotos é que me atraiam. E eu não queria arranjar namorada para fingir. Falei para minha mãe, e ela, de início, reagiu mal. Para ela, gay era um marginal. Depois foi aceitando, hoje a relação familiar não tem problemas e um dos meus irmãos que mora em Alagoinhas também é gay.
No momento, Jean Wyllys não tem companheiro. Antes de morar no Rio teve uma relação de um ano e seis meses na Bahia. E, no Rio, os namoros foram rápidos, de seis, sete meses. Em Brasília, o relacionamento fica mais difícil. Ponte aérea Rio-Brasília; trabalho em Brasília de terça a sexta; no fim de semana, atividades políticas. “As pessoas cobram, né?”
- E o que aconteceu com seu pai?
- Não consegui ter uma relação positiva com ele, porque rolava esse comportamento dele, o alcoolismo. E o olhar que eu tinha sobre meu pai era o olhar de minha mãe. Via o sofrimento dela e tomava as dores dela. Só comecei a compreendê-lo quando adulto e distante dele. E fui me reconhecendo assombrosamente parecido com ele. Foi muito doloroso identificar que as melhores coisas que eu tinha, que as pessoas mais admiravam em mim, não vinham de minha mãe, vinham dele. Minha mãe é calada, pé no chão. Ele tinha um certo carisma, buscava a popularidade, tinha sua poesia. O fato de ser alcoólatra nos afastou.
- Você está assistindo à novela das nove, “Insensato Coração”?
- Eu me vi muito na relação do André [Lázaro Ramos] com o pai dele [Milton Gonçalves]. Na cena da morte chorei muito porque recuperou os últimos meses da relação com meu pai. Estivemos muito tempo afastados. Um belo dia, fui de Salvador visitar minha mãe em Alagoinhas e ele estava doente. Só parava de beber quando estava doente, de cama. Perguntei se tinha ido ao médico. “Fui”, me disse. “Ele me passou um antibiótico. É garganta.” Olhei seu pescoço e tinha um caroço. Imediatamente pressenti o pior. O salário no jornal só me permitia pagar um plano de saúde, e eu pagava para minha mãe. Tive então que recorrer, pela primeira e única vez na vida, à minha posição de jornalista. Consegui furar a fila no Aristides Maltez, em Salvador, hospital público de referência. No dia de pegar o resultado da biópsia, a gente foi de ônibus, ele do meu lado. Era tão louco aquilo!… Havia um abismo entre mim e ele. E ele era o meu pai. O diagnóstico foi positivo, o câncer era na base da língua. Do diagnóstico até a morte, foram nove meses. Um parto ao contrário. Nove meses de redescoberta da gente. E de perdão, sabe? Quando morreu, senti falta de tudo que ele não foi e de um pai que não tive. A vida distribui mal as suas cartas e ele recebeu um péssimo jogo… Acho que ele gostaria de me ver agora…
As lágrimas brotam dos olhos de Jean Wyllys e escorrem para o bigode e o cavanhaque. “Desculpe”, diz.
Único gay assumido no Congresso Nacional, Jean Wyllys não prejulga os que se negam a assumir. Para ele, cada um tem seu tempo. E cita Caetano mais uma vez: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
- O que eu combato são os hipócritas, os enrustidos que fazem um discurso de desrespeito e incitação à violência contra gays.
- Isso existe?
- Muito.
- No Congresso, quero dizer.
- No Congresso, inclusive. Dá vontade de arrombar a porta do armário e puxá-los para fora. Nos Estados Unidos, os gays fizeram isso: “Out!”
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